quinta-feira, 7 de junho de 2012

[OS PENSADORES] Alternar o Recolhimento e a Vida Social

Este é o último artigo sobre os escritos de Lúcio Aneu Sêneca, retirado da coleção Os Pensadores. No primeiro artigo falamos sobre A Superioridade e o Desprendimento do Sábio, no segundo sobre Não se Obstinar Contra as Circunstâncias, e agora vamos falar sobre o equilíbrio entre vida íntima e social, bem como divertimento e trabalho. Em meu ponto de vista, Sênica é até um pouco liberal ou sincero demais – de modo que o limite moderado pode nos fazer falta e a mente confusa não o encontrará em determinadas circunstâncias e meios sociais. Aproveitei o tema para inserir um trecho dos escritos do monge zen budista, Takuan Soho, com o parágrafo destacado; convém saber que o monge se refere ao Japão de 1600 – mas ainda assim atual.

Fotografia: Xava Du (Flickr, CreativeCommons)

“É preciso frequentemente recolhermo-nos em nós mesmos: pois a relação com pessoas diferentes demais de nós perturba nosso equilíbrio, desperta nossas paixões, irrita nossas restantes fraquezas e nossas chagas não completamente curadas. Misturamos, todavia, as duas coisas: alternemos a solidão e o mundo. A solidão nos fara desejar a sociedade e esta nos reconduzirá novamente a nós mesmos; elas serão antídotos, uma à outra: a solidão, curando o horror à multidão, e a multidão, curando nossa aversão à solidão.”
“O corpo é como um sonho. Quando percebemos esse fato e acordamos, não sobra sequer um vestígio. Quanto tempo ainda temos para procurar? 

Não era sem razão que os antigos passavam a noite em claro, acendendo as lâmpadas e divertindo-se nas horas de escuridão. 

Neste ponto, pode-se cair em erro. Deve haver critérios para a diversão; se houver, ela não fará mal. A pessoa que não tem critérios enlouquece. Se a pessoa, ao se divertir,  não cai em em erro, ela não transgride esses critérios. O que chamamos de critérios são, em geral, limites fixos para todas as coisas. Como os nós do bambu, a maior parte das diversões devem ter limites. Não é bom transgredí-los. 

A nobreza cortesã tem as diversões da corte, a casta dos samurais tem as diversões dos samurais e os sacerdotes têm as diversões dos sacerdotes. Cada um deve ter a diversão que lhe cabe.

Pode-se dizer que o envolvimento em diversões que não concordam com a posição social é um erro de critério. A nobreza cortesã tem a poesia japonesa e a chinesa e os instrumentos de sopro e de cordas. Com essas coisas, não haverá nada de errado em que eles passem a noite em claro. É razoável que também a casta dos samurais e os sacerdotes tenham diversões que lhe são apropriadas.

A rigor, não deveria haver diversão para os sacerdotes. Diz-se, porém que ‘em público, nem uma agulha passa; mas, em particular, passam uma carruagem e seu cavalo’. Isso significa que, compreendendo a mente do ser humano e reconhecendo que o mundo degenerou, devemos deixar que também eles tenham as suas diversões. Deve-se, permitir que, reunindo-se na quietude noturna, eles componham poesia chinesa e japonesa, e até mesmo versos ligados. Num outro nível, não é descabido que eles inclinem o coração para a Lua e as flores de cerejeira e, acompanhados por jovens de quatorze ou quinze anos, dirijam-se para um lugar onde se possa ver a Lua sobre as flores; e, lá, partilharem eles algumas taças de saquê. Não é de mau gosto que tenham também um pequeno tinteiro e papel para escrever.

Mas nem essas coisas são consideradas apropriadas para um sacerdote que aspira ao espírito religioso. Que dizer, então, de outras versões menos requintadas?

Não seria motivo de surpresa se a nobreza e os samurais, percebendo que este mundo mutável não passa de um sonho, acendessem as lâmpadas e passassem as noites em diversões [carpe diem].

Há aqueles que dizem: ‘Tudo é um sonho! Só nos resta a diversão!’ Essas pessoas levam a mente além dos limites, afundam-se nos prazeres e vão até os extremos da luxúria. Embora citem as palavras dos antigos, a mente delas está tão longe da mente dos antigos quanto a cinza está longe da neve.'”

SOHO, Takuan. A Mente Liberta: Escritos de um Mestre Zen a um Mestre da Espada. São Paulo: Editora Cultrix, 1998. p.73-75

Alternar o Trabalho e o Divertimento

“Nem mesmo é bom ter sempre o espírito igualmente ocupado: é preciso saber distraí-lo com divertimentos. […] É preciso saber recrear  o espírito: ele se mostrará, depois de um repouso, mais resoluto e mais vivo. […] Quando o esforço se prolonga demais ele acarreta à inteligência uma espécie de enfraquecimento e de abatimento. Todavia, abusando do divertimento, o espirito perderá sua elasticidade e seu vigor: o sono também é necessário para restaurar nossas forças; mas se ele continua dia e noite, é a morte. Suspensão e supressão não são absolutamente sinônimos.

É preciso governar nosso espírito e conceder-lhe de tempos em tempos um descanso que fará sobre ele o efeito de um alimento restaurador. É preciso, igualmente ir passear em pleno campo, pois o céu aberto e o ar puro estimulam e avivam a inteligência; algumas vezes uma alternação, uma viagem, uma mudança de horizontes, assim como uma boa refeição com um pouco mais de bebida do que costume, lhe darão um novo vigor. Pode-se mesmo, por vezes, chegar até a embriaguez; não, de modo algum, para nele mergulhar, mas para nela encontrar a calma, pois ela dissipa as inquietações, modifica totalmente o estado da alma e afasta as tristezas, assim como cura certas doenças. O inventor do vinho não foi chamado “Liber” porque ele solta a língua, mas sim porque liberta a alma das inquietações que a escravizam; e a reanima e fortalece e dispõe para todas as audácias.

Mas o vinho, assim como a liberdade, não é salutar a não ser tomado com medida. Não se deve recorrer a ele muito frequentemente, a fim de não adquirir este detestável hábito, é preciso, todavia, por um instante afrouxar as rédeas à exuberância e à liberdade e fazer uma interrupção momentânea à sobriedade austera demais. Porque se acreditamos no poeta grego, “É doce algumas vezes perder a razão”, ou em Platão: “É em vão que o homem de sangue frio bate à porta das musas”;  e Aristóteles: “Não se vê jamais um gênio que não tenha seu grau de loucura”. Somente a linguagem de uma alma exaltada pode atingir o majestoso e o grandioso. Que ela desdenhe os sentimentos vulgares e batidos; que um entusiasmos sagrado o anime e a arrebate: somente depois ela pronunciará palavras divinas pela boca de um mortal. É impossível alcançar o sublime e o inacessível, enquanto a alma pertencer à si mesma: é preciso que ela se desvie de seu caminho habitual, se liberte: e que, mordendo o freio, arrebate seu cavaleiro e o faça subir a alturas, onde ele jamais se arriscaria por si mesmo.

Todavia, dize a ti mesmo que nenhum destes meios é suficientemente poderoso para salvaguardar um bem tão frágil, se não cercamos com a mais ativa e a mais zelosa vigilância nossa alma, sempre pronta a se deixar desviar.”

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